quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

INTERLOCUÇÕES

Os inversos, as conversas
e as pessoas adversas:
olhos que se agitam,
olhos que se justificam,
que se liquidificam conversos.

Existem muitos ventos e um só tempo invisível,
os inventos espúrios das sombras,
sombras que não gritam,
que nunca dizem,
que nem explicam.

Então se compõe um momento sintético,
extravagâncias, supostas formas originais;
há uma linguagem adequada e bem urdida,
o silêncio de ser,
o que se faz...

E, na noite, há catástrofes invisíveis de eternidades,
desarticulações, substâncias desmanchadas,
os paradoxos do imaginário,
as ruas inventadas,
a cidade....

A AULA

Os números em rígidas lousas,
como as palavras, os ditames,
a negação dos tempos impossíveis,
das vozes delinqüentes, do sereno
das noites que não podem acontecer.

As luzes têm que ser as preestabelecidas,
como a vida e os sentidos do ser e do não-ser,
mesmo que os pés se arrastem na escuridão.
A mudez e a cegueira são as obrigações primeiras
e as brasas não podem arder em terrenos baldios.

As mãos que confortam e aplaudem
são as mesmas dos que reprovam e reprimem,
mãos de quem sempre nega e exclui,
e escreve os números e as palavras,
as coerências e as discussões dos compêndios.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Exoração

Mãe-Terra, senhora dos grãos,
da fartura e dos agradecimentos,
da fertilidade e do amadurecimento:

não vê, em seus ermos quase desertos,
que suas estações pouco regeneram,
os passos de seus tristes filhos renegados,
que, vestidos de paixões e de escuridões,
do sofrimento dos homens agonizados,
buscam os braços do senhor das Trevas?

Lá, onde as árvores se descontinuam,
que são as presas das superfícies dos dias
e as substâncias tortuosas da noite,
corpos corrompidos, fragmentados!
Lá, onde os ventos são poeiras de lamas secas
e há a rigidez dos tempos encurvados!

Lá, onde os retirantes são sonhos aniquilados,
são mãos desfiguradas em braços esquálidos,
onde os rumos são os caminhos inexistentes,
pés de sangue que seguem pelas catingueiras,
as infâmias dos suplicantes e dos penitentes!

Via Láctea

Silêncio!...
Sinta o respirar eterno da noite,
do imenso tapete de estrelas,
do que permite a ausência da Lua,
os sentidos do mundo!...

Ouça os sons inaudíveis,
os sons do tudo e do nada,
do que está depois das estrelas
e depois de seus olhos,
depois de sua alma despida!

E não receie esta relva fria e úmida,
a relva que cobre esta colina invisível,
onde circulam cegas as serpentes,
nem as vargens brejadas, lá embaixo,
onde correm luzernas desorientadas.

Apenas se solte... E sinta,
sinta seu próprio valor, sinta seu medo...
O universo pulsa.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

APATIA

Existe uma permanência,
existe um mundo cansado;
ele tem os extremos de algum tempo,
um vento inicial abandonado;

existe um cômodo letal,
uma luz sem cor e sem brilho,
uma esquecida mobília lateral,
colchas amareladas, encardidas:

restos, velhas coisas desarrumadas.

Existe uma substância inerte e encerrada,
a frieza e os ecos de falas mortas,
os cristais dos dias e das noites,
um corpo acumulado e um tempo unificado:

as sombras da casa e as sombras da rua.

NO DIA EM QUE NASCI

Havia ventos. Antes que eu os percebesse,
eles cantavam, conduziam pensamentos,
conduziam beijos, flores produzidas,
os preceitos dos sonhos e das almas;
e, na solidez dos momentos inventados,
despertavam-se todos os pássaros do dia.

Ventos... Ventos...
Tão permanentes, tão intensos e envelhecidos,
e já se estendia uma idade e nada mais se fazia.
Nas formas renegadas e nos olhos sangrados,
as singularidades que não se percebiam.

E havia gente que chegava e que se ia,
algumas pessoas que morriam,
outras que se anunciavam novas,
e muitas pessoas que nada diziam,
talvez sentissem muito frio.

Reflexão

Não me permitiram data nem tempo,
minhas circunstâncias eu inventei,
ao furtar a linguagem da cultura,
ao querer-me não-sujeito,
e meu lugar é o segredo de mim mesmo.

Os pés não são para colocar no chão,
mas para medir o tamanho do Sol,
ao deitar-me na Contemporaneidade,
conferindo, na pós-idade,
que a luz ainda permanece a mesma.

Constrói-se porque há destruição
e constrói-se apenas para destruir,
já que a criação é o acontecimento do mundo,
o desespero profundo das criaturas,
dos saberes infecundos.

Na noite que tanto me invade,
sempre há uma doce colina invisível,
onde serpentes circulam ensandecidas,
o chão é sempre morno e imprevisível,
e sobre a relva, meu corpo despido.

SUBLIME LOUCURA

Ah, os que se pretendem poetas,
mesmo sem o serem!...

Com seus desvarios e ousadias,
por mais ridículos e incoerentes,
eles sempre tiram os pés do chão,
sempre voam sem poder voar
e bebem os leites das estrelas,
mas sem poder bebê-los...

E esquecem-se no sentir do si mesmo,
ou em palavras ou em olhos encantados,
quando não no sem-sentido,
na respiração do mundo.

O momento

Tudo está pronto.
Tudo está pronto em um canto
e algo rompe o silêncio e o vazio...
Esta é a hora!

Um chão bem despido e frio,
uma alma despropositada,
uma alma distante, empoeirada,
os velhos papéis rasgados.

Certa pressa, certa agonia,
o momento, a ansiedade,
o vozerio e o vazio,
a necessidade de conclusão.

E homens imensos se insinuam
eles se adentram em um tempo morto,
homens suados, seminus,
sólidos homens decisivos.

A partida, o restos abandonados,
e a casa bem escura, bem lacrada.

MEU COMPARECER

Aqui estou:
no silêncio de meus olhos,
nas palavras que não encontro,
neste dia em que escrevo!

Tenho eras escondidas,
aves-serpentes engaioladas,
são vontades-venenos extremadas,
tempestades, tempestades...
substantivas muralhas estremecidas,
casas demolidas e corpos saqueados.

Com meu grito imenso,
visto-me das velocidades dos ventos,
sinto o frio dos corpos desamamentados,
o intenso vibrar das vozes inválidas,
estrelas deslizando lentamente no chão.

Ainda ouço as sereias de Ulisses, o Odisseu,
sinto ainda a espuma do mar no rosto,
mas solto do mastro e sem Penélope,
coberto por panos tecidos nas noites,
nem mais meu cão me reconhece.

Agora, os cavalos são de sílica,
há sangue circulante em nervos óticos,
os invasores são outros, são metálicos,
e os gritos dos fantasmas da sagrada Ílion
são corpos que flutuam no mar adormecido...

Apenas corpos que flutuam...

A TRISTE MOÇA DA SALA

Ela, seus ouros envelhecidos,
seus antigos brinquedos violados.
Nos olhos e nos lábios sem expressão,
ela perfeitamente:

roupas apagadas de meio-de-sala,
do silêncio do corpo sobre a poltrona;
sob cabelos caídos, a substância negada,
o rosto voltado para os pés;

compondo o tempo e as sombras,
as opacidades das paredes,
seios esmagados, deformidades,
o espelho e os retratos apagados;

e, nas imagens e no chão exaurido,
há uma antiga criança deixada,
há o vazio dos passos, dos gestos,
e há vultos elaborados que vagam.

Tudo está decidido ali, naquele lugar,
nos movimentos aparentes das pessoas,
nas intransigências das expressões,
na imobilidade do ar!

Há desistências, há desistências...

NA JANELA

Veja, cidade: estou aqui, em seu dia,
através desta janela, vestido com sua luz!

Sei que tenho palavras que não digo,
desejos que sempre desconheci,
muitas canções inexistentes...
Ah, linda cidade!...
No frescor desses ventos,
ventos que são de seu dia,
sou naquilo que nunca pude ser.

Sobre minhas sombras, meus gestos,
minhas imagens tão cultivadas
e deixadas sobre os concretos das ruas,
passam veículos velozes, muito velozes.

Na mesa coberta com manto que teci,
feita com os sentidos de meus segredos,
nela, depositei muitos néctares e ambrosia,
a obediência de meu olhar eterno.

ÊXTASE

Quando alguém se toca
e busca e se sente com intensidade,
os minutos se tornam eternidades,
há valores e corpos violados,
há feridas por onde escapa o chão.

E surgem seres sem máculas,
luzes de sombras cultivadas,
almas intensas, vozes silenciadas,
e deslacram-se as imagens repudiadas...
Há cristais de sonhos no ar.

terça-feira, 25 de novembro de 2008

Cotidiano

Na sala, estão as pessoas de dentro de casa,
as pessoas antigas e as que se ausentaram,
a luz pálida que se estende bem fraca e nua,
a luz da lâmpada, do silêncio pendente,
o sofá, a poltrona, a escura mesinha de centro,
e uma noite retida na rua.

As conversas são fúteis, as palavras desnecessárias,
bocas alongam-se e retraem-se – vozes,
os contornos dos lábios, os hálitos inúteis.
É sólida e conciliada a casa possuída,
conserva-se o tempo, a lâmpada está bem fixa.

Os olhos desbotados, acostumados,
eles se trocam nas mesmas faces,
os gestos são recorrentes, lentos,
novas costuras na roupa antiga
e a maneira do não-fazer.

E as moscas dormitam, sempre dormitam:
há o lado de dentro, o ócio despercebido,
o fio que prende a lâmpada, a quietude,
a luz, a mesa e as cadeiras quase vazias,
a poeira que flutua quase imóvel.

Desconformidades

As horas...
A repentina mãe tardia,
um determinante tempo repetido.

Uma voz rouca e inútil,
a moça, as gentes distantes,
os poucos passos restantes.

E os cães latem, velhos cães,
eles latem no vazio, nos sonhos encerrados,
eles latem numa noite impossível.

E tem uma rua oca e uma esquina adiante
e, depois, um longo instante e uma avenida,
um semblante de velho guarda noturno

e muitas irreferências.

Circunstância

Eu, talvez, surgi em dia sem luz,
qualquer coisa assim...
Se os candeeiros ardiam
(algo devia fazê-los arder),
o vento frio apagava-os
e nenhuma criança chorava.

Muitos me aplaudiam com ardor,
aclamando tempos já enrijecidos,
os lobos uivavam nas ruas,
algumas ovelhas dançavam,
e haveria gente sem cor,
no dia em que surgi.

As sombras deviam ser vadias,
bem vestidas, muito chiques,
e, se não há engano, tardias.
Havia uma mesa largada no canto,
muitas eram as cadeiras vazias,
e uma casa apagada havia,
onde se ergueria um pretendido muro.

Partida

A esquina seguinte,
a moça que fica distante,
uma imobilidade instantânea,
o silêncio da madrugada, ainda a espera...

Porém, o carro é solitário e brilhante,
sua velocidade é a inversão da avenida,
a extensão dos olhos vazios,
o prosseguimento do dessemelhante.
Na imensa calçada permitida,
os brilhos das lâmpadas dos postes,
os sentidos da retirada, da escusa.

No fim da noite, há frieza,
há um forte eco de casa vazia,
as imagens que desaparecem dos olhos,
o sentido da moça que não aconteceu.

sábado, 8 de novembro de 2008

Retorno

Ah, volto das circunstâncias de uma luz,
sou vestido de éter e de essências arruinadas,
trago o vazio dos cristais e uma cor cósmica,
caminho com os símbolos humanos dos valores.

Meu pão ainda é duro e muito amargo,
meu sangue é de vinagre e veneno,
tenho um tempo e líqüidos anoitecidos,
uma só compulsão, um só espaço:

reivento-a linda moça,
dou-lhe palavras e gestos,
eu me levanto bem único,
minha voz pode não ser etérea!

Sempre reelaboro meus apetites e minhas posses.

sábado, 1 de novembro de 2008

Noite densa

Noite densa, noite sem brisa!...
Eu venho do vazio, por onde a penetro,
e, como percorresse chão imenso,
faço-me o silêncio estrelar...
Sou vento e sou prata de oceano.

Meu corpo, que lanço em areias desertas,
é sombra desvairante dos adormecidos,
palmeira-serpente estendida para o escuro...
E pedra banida, pedra cambiante.

Tenho um não-beijo, um tempo inexistente,
tenho o que as águas do rio nunca levam...
nem trazem...

Ah, densa noite:
Sou ar e sou sonho desafiante,
com minha mão, ergo confiante
a luz que é só minha, a luz visionária,
em que se encaminha alma adversária!

E entre as pessoas silenciosas,
que são águas consentidas no dia,
deito-me na praia que foi formosa
e vejo ambrosias feitas de lua.

E sua chuva triste é minha sentença,
a meu irmão, só ofereço lama infeta,
a dor que sinto tão intensa e forte,
a imagem abjeta em que me estabeleço.

Noite densa, tão noite, tão verdade,
lá, depois da praia que foi formosa,
o largo rio, um rio sem mortos,
sei que se abre para a iniqüidade!

Por que não me deixa ver o rio, noite,
se me traz seu som, seu cheiro de mil vidas,
no sentido frio de sua permanente chuva?
Por que, noite, você é tão minha?

Chuva

Linda cidade que não é minha:
sob seu sol e sobre seu dia,
chove, linda cidade, chove!...
Diamantes cruzam seus ares,
crianças vadeiam pelas ruas.

domingo, 19 de outubro de 2008

Descaimento

Tem-se o sentido de um vulto,
a inquietação da sala, do vazio,
toma-se a suposição de uma luz acesa,
a mancha de alguém inexistente,
uma porta que se abre e fecha lentamente.

A tênue luz que se infiltra na sala,
no chão, numa escrivaninha preta,
um espelho é um cômodo marginal,
a permanência, o silêncio, a sala nua...
o momento do que resta,

a sobra de uma rua...

A porta é fechada decididamente,
a porta que se aprofunda numa noite,
numa noite densa, pesada, repetida,
o sujo insistente, a luz de velas contingentes,
e há fendas nas antigas janelas.

...

Ele tem o sentido da moça,
de sua presença exaurida,
de sua respiração ordinária,
seus odores usados, um rosto sem cores,
os vômitos dos dias anteriores.

Ele lhe lambe o corpo suado,
aperta-o morno e pegajoso,
absorve-lhe a submissão, a imundície,
há uma sombra escorregadia e disforme,
e há uma diferença definitiva... um manto,

o outro lado, o outro canto.

Onze e meia da manhã

Os bem-te-vis cantam
depois de assustados os gaviões pardos,
os gaviões do amanhecer,
depois de devorados os ratos;
já um pouco distante,
chilra um soberano sabiá engaiolado,
um canto redundante.

Na rua matutina...
vem um carro com alto-falante,
duas imagens em andores floridos,
depois dois padres paramentados
perseguidos por quatro sacristães,
passos desalentados, vagarosos,
depois o vozerio, as preces, as cantorias...

Banhos beatificados e piedosos.

Sob o Sol já alto e brilhante,
na cidade imobilizada, no dia primaveril,
algumas árvores desfolham lentamente...
Exotismos do chão pavimentado,
questões outonais,
diferenças européias.

Palavras tão minhas

Ah, doce Léa!...
Quando ouço uma música,
a música que fala da “longa estrada”,
da “velha calça desbotada “,
das coisas, “dos detalhes tão pequenos”,
e noto meus olhos voando nas distâncias...

É quando ainda sinto a maciez de seu rosto no meu,
seu beijo sempre tenro e úmido,
sua maneira meiga de dar-me um nome,
o ronco de um carro que não foi meu,
a retirada furtiva de um vulto que não vi,
minha chegada que nem sei se foi conveniente,
o tempo que construímos juntos.

(Referência: “Detalhes”, de Roberto Carlos e Erasmo Carlos).

Transmutante

Sou imagens de membranas e água,
tenho-me inteiramente sonhado,
tenho meus olhos opacos e cegos,
meus olhos maculados;

tenho uma dissolução e uma permanência,
muitos ídolos rachados e artifícios de um chão,
tenho uma consistência e intensas noites consagradas,
uma cruz cintilante e muitas moedas passadas.

sábado, 11 de outubro de 2008

Palavras tardias

Moça perdida em meu próprio tempo,
das tardes ensolaradas em repouso:

No piano, meu momento, minha palpitação;
no fascínio surpreendente de sua imagem,
o sonho de amor de Franz Liszt latente,
e os seios que vi tão reais e não toquei.

Naqueles fortes brilhos dos dias entardecidos,
meus olhos inseguros, meus únicos olhos,
meus desjeitos, minhas inexatidões pubescentes,
minha voz incerta, minha voz...

...

Ah, moça da roupa descuidada,
do calor das pernas verdadeiras que senti,
que fez meu sonho pulsar em rosto rubro,
na sala do passado que tinha sua música...

Ainda lhe ofereço minha memória, ainda,
mesmo que memória sem corpo e sem sangue,
com a intensidade dos olhos que me proibiram
ou que, talvez, muito me recusei a descobrir.

E, em meu silêncio indeciso na sala de sua música,
em minha triste alma que ficou desedificada,
o dia que não construí.

sábado, 4 de outubro de 2008

Nesta noite

Ah, o entendimento, a validade,
a estagnação dos horizontes intangíveis,
os segredos das imagens que se têm,
a suposição dos ângulos, a invisibilidade!

Em uma deformada obstinação,
uma voz configurada e uma exterioridade,
uma decidida adequação de formas,
a conveniência de uma luz recurvada.

Entre os ventos, os muitos ventos,
há os que sempre uivarão vazios,
sempre inalteráveis, enganados,
escuros e frios, em somas planetárias;

no silêncio dos passos irresolutos,
lágrimas secas e preces escusas,
as conclusões do sono elaborado,
as definitivas substâncias do ar:

nesta noite, nesta noite tão decidida,
há um tempo excluído, um silêncio conformado,
os desatinos dos ídolos, os métodos da inexistência,
são sólidos os continentes.

Hiatos

Tenho meus olhos cegos na avenida,
em sua ausência, nas distâncias do mundo...
Eu consulto estranhas estrelas, estranhas nebulosas.

Tenho meus olhos na chuva fria,
eu a detenho passiva em minha alma esquecida,
em meu tumulto, em um vento de noite vazia.

...

Eu tenho a velocidade esmagada,
uma imagem e um veículo sem formas,
eu invento seu corpo e meu sangue...

E ergo-me vivo e visionário,
Tenho os fragmentos de um chão,
Ergo-me coberto de espelhos e cristais.

...

Ergo-me substanciado em meu delírio,
na avenida, em sua grande ausência,
nos fragmentos de um corpo inexistente.

A criança

Qualquer cor, qualquer momento,
sempre a luz da cidade, ser e querer ser,
estar presente.

Não há um dia seguinte,
mas a vontade que trazemos,
o hoje que escondemos em nós,
talvez os passos que não daríamos,
qualquer rua, qualquer parede,
o chão em que colocamos os pés.

E o filho sempre será de humana divindade,
sempre se fará no riso dos desesperançados,
na voz dos desgraçados, dos insanos,
na sina dos desistentes e de nossos olhos,
nas angústias dos conformados,
na mão que não estendemos.

Ei, criança que está além de minha janela,
criança deixada dentro de um vestido lunar,
roupa de gente grande e suja de noites eternas:
vejo sua mãozinha saindo de dentro do tempo,
o beijo que lhe recusam, o silêncio do dia,
a lixeira do prédio e seu riso tão esperto!

Ei, criança mistura de mundo e fantasia,
eu a percebo, como a percebo:
você vem de grande luz imaginária!

No quarto

A janela, o azul, o lado de fora...
Nuvens raleadas depois da janela,
as garças brancas que se escurecem!

E a cidade que não é minha,
o calor da cortina e três paredes lunares,
a porta da luz para o resto dos cômodos,
a espreguiçadeira gasta onde se repousa...
E o corredor é escuro, o firmamento,
a morada sem unicidade.

O retrato sob o abajur apagado.
No sentido da conformidade, a espera,
uma cama assentada no vazio;
nos olhos, a deformidade,
o mundo intervalado:
a mão desliza no corpo.

E as cores nunca se roubam,
os transeuntes articulados são invisíveis,
as roupas penduram-se em cabides,
os traços são elementos simetrizados,
os jardins de dentro são os jardins de fora,
as uniformidades de pedras cobertas por cimentos.

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Presença

Ah, fugir-nos-emos seguros, surpreendentes, livres!
Estaremos contidos em sólidas paredes, protegidos,
distantes um do outro, inteiramente abrigados.

O veículo já percorre as totalidades existentes,
ele rompe os sonhos, todos eles, e as almas:
estaremos inteiramente extremos, alheios.

Não deixemos que estas pessoas permaneçam,
estas pessoas sempre tão aparentes e esquivas,
pensemos em nossas impossíveis palavras.

E pensemos nas nossas impossíveis carícias,
na avidez que não teríamos, em nossa ausência,
nas controvérsias em que nos construiríamos.

Temos invisibilidade em nossas entranhas,
o silêncio é a medida de nossa intimidade.

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

PAISAGEM

Veja a campina!...
Ela é imensa, imensa...
Alcança a montanha ao longe,
a montanha acinzentada...

Ela é dividida ao meio:
a rígida cerca de arame farpado,
o rio imóvel que a atravessa
– a campina vazia sob o Sol.

No céu estarão meus olhos de diamantes,
o próprio céu é meu próprio rosto,
o resto de meu corpo, a montanha distante,
e não tenho substância, não tenho alma.

Talvez seu semblante seja a cerca,
a rigidez que delimita as distâncias,
ainda que sua voz seja o vento,
meu som solitário, meu silêncio.

Já o rio imóvel...
Ele é apenas um rio imóvel.

sábado, 14 de junho de 2008

DESARTICULAÇÕES

Em meus ouvidos se injetavam palavras,
os uivos do tempo que construí e possuiu-me,
E meus olhos se invertiam fechados,
minha alma, uma silenciosa chama irresolvida.

No lado de fora, haveria outro tempo,
o da umidade pegajosa sobre o corpo,
o do calor imóvel e da mudez das ruas
que imenso pássaro branco sobrevoava...

Ah, os guinchos do imenso pássaro branco!...
Ele me assustava, congelava-me a carne,
fazia-me o pressentir de um corpo imutável,
meu caminhar vazio na cidade sem esperança:

meus passos na noite das ruas,
na noite das casas dos homens adormecidos,
dos imensos prédios centrais abandonados,
dos veículos ausentes, das pedras desvividas.


sexta-feira, 30 de maio de 2008

Despertar

A luz, quando surgiu,
fez-se em fruto precioso
e viram-se cruas as almas:
havia mulheres lascivas nas relvas
e homens aturdidos pelos vinhos.

Sob as sombras de árvores frondosas,
nos corpos inteiramente descobertos e nus:
as agonias e os êxtases onanísticos,
os sombreados e as decisivas rebeldias.


Era um tempo de olhos letais.

Amanhecer

Então o Sol veio de depois do mar,
veio de detrás dele, bem de longe;
água-chumbo acabada na praia,
mansidão de brisa e de marulho,
tempo imobilizado no céu de mostarda.

Lâmpadas que se apagaram,
o chão de areia endurecida de água,
os pequenos passos-poça que ficavam,
qualquer dia, um dia repetido e cansado,
o odor da comida que se desejou.

Mil lampejos de cores nascentes,
velhos vultos atléticos nas calçadas,
muitos aparelhos de tv já ligados,
vias de casas e templos convergentes,
os incontáveis sonhos estabilizados.

Então, ao passar dos primeiros veículos,
inúmeras virgens dançaram como vestais,
senhores e senhoras muito se ensimesmaram.

Os pássaros foram matinais,
as pequeninas crianças, risonhas,
e alguns meninos e meninas, desencantados...

segunda-feira, 19 de maio de 2008

Noturno

Ah, quando os tempos se levantam
e o mundo adormece,
quando espero a brisa!...

Na noite, no silêncio das estrelas,
cintile cidade, cintile muito em seu sono,
cintile em seus olhos tão fechados,
pois há cavalos-luas e cavalos-nuvens,
brancos cavalos alados no alto do céu,
e uma presença doce que vem a mim!

Luminosidade

A lâmpada é o artifício,
ela mostra a luz que se quis:

na substituição da alma,
a validade que se constrói,
o que cruza a invisibilidade do ar;

nas imagens da alma desvivida,
o tempo adquirido, o sossego...
a ordem de uma casa fechada.

quinta-feira, 17 de abril de 2008

A CASA

A casa tem uma rua deserta e uma cor incerta,
um jardim cuidado, paredes envelhecidas,
o tamanho bastante de um telhado
e a porta lacrada.

Na sala, pés polidos nos mosaicos gastos,
a luz do teto acostumada,
há o que se vê e não se percebe,
o sangue ordinário...

Janelas e duras argamassas,
velhos móveis com vernizes renovados,
muitas linhas e almas encurvadas
e alguns cômodos na escuridão.

sábado, 12 de abril de 2008

MEU DEFEITO

Meu defeito talvez seja minha voz,
uma voz que nunca escutam,
uma voz sem eco, uma voz morta;

talvez seja minha canção solitária,
decerto, a canção que não tenho
ou a canção que não me mostram.

Meu defeito talvez seja um segredo,
o silêncio que sempre me fazem
ou meu próprio silêncio;
talvez as diferenças dos olhos
ou um corpo em que nunca toco...

Ah, talvez, os dias que não me mostram
ou, talvez, um beijo que eu não daria!...