domingo, 19 de outubro de 2008

Descaimento

Tem-se o sentido de um vulto,
a inquietação da sala, do vazio,
toma-se a suposição de uma luz acesa,
a mancha de alguém inexistente,
uma porta que se abre e fecha lentamente.

A tênue luz que se infiltra na sala,
no chão, numa escrivaninha preta,
um espelho é um cômodo marginal,
a permanência, o silêncio, a sala nua...
o momento do que resta,

a sobra de uma rua...

A porta é fechada decididamente,
a porta que se aprofunda numa noite,
numa noite densa, pesada, repetida,
o sujo insistente, a luz de velas contingentes,
e há fendas nas antigas janelas.

...

Ele tem o sentido da moça,
de sua presença exaurida,
de sua respiração ordinária,
seus odores usados, um rosto sem cores,
os vômitos dos dias anteriores.

Ele lhe lambe o corpo suado,
aperta-o morno e pegajoso,
absorve-lhe a submissão, a imundície,
há uma sombra escorregadia e disforme,
e há uma diferença definitiva... um manto,

o outro lado, o outro canto.

Onze e meia da manhã

Os bem-te-vis cantam
depois de assustados os gaviões pardos,
os gaviões do amanhecer,
depois de devorados os ratos;
já um pouco distante,
chilra um soberano sabiá engaiolado,
um canto redundante.

Na rua matutina...
vem um carro com alto-falante,
duas imagens em andores floridos,
depois dois padres paramentados
perseguidos por quatro sacristães,
passos desalentados, vagarosos,
depois o vozerio, as preces, as cantorias...

Banhos beatificados e piedosos.

Sob o Sol já alto e brilhante,
na cidade imobilizada, no dia primaveril,
algumas árvores desfolham lentamente...
Exotismos do chão pavimentado,
questões outonais,
diferenças européias.

Palavras tão minhas

Ah, doce Léa!...
Quando ouço uma música,
a música que fala da “longa estrada”,
da “velha calça desbotada “,
das coisas, “dos detalhes tão pequenos”,
e noto meus olhos voando nas distâncias...

É quando ainda sinto a maciez de seu rosto no meu,
seu beijo sempre tenro e úmido,
sua maneira meiga de dar-me um nome,
o ronco de um carro que não foi meu,
a retirada furtiva de um vulto que não vi,
minha chegada que nem sei se foi conveniente,
o tempo que construímos juntos.

(Referência: “Detalhes”, de Roberto Carlos e Erasmo Carlos).

Transmutante

Sou imagens de membranas e água,
tenho-me inteiramente sonhado,
tenho meus olhos opacos e cegos,
meus olhos maculados;

tenho uma dissolução e uma permanência,
muitos ídolos rachados e artifícios de um chão,
tenho uma consistência e intensas noites consagradas,
uma cruz cintilante e muitas moedas passadas.

sábado, 11 de outubro de 2008

Palavras tardias

Moça perdida em meu próprio tempo,
das tardes ensolaradas em repouso:

No piano, meu momento, minha palpitação;
no fascínio surpreendente de sua imagem,
o sonho de amor de Franz Liszt latente,
e os seios que vi tão reais e não toquei.

Naqueles fortes brilhos dos dias entardecidos,
meus olhos inseguros, meus únicos olhos,
meus desjeitos, minhas inexatidões pubescentes,
minha voz incerta, minha voz...

...

Ah, moça da roupa descuidada,
do calor das pernas verdadeiras que senti,
que fez meu sonho pulsar em rosto rubro,
na sala do passado que tinha sua música...

Ainda lhe ofereço minha memória, ainda,
mesmo que memória sem corpo e sem sangue,
com a intensidade dos olhos que me proibiram
ou que, talvez, muito me recusei a descobrir.

E, em meu silêncio indeciso na sala de sua música,
em minha triste alma que ficou desedificada,
o dia que não construí.

sábado, 4 de outubro de 2008

Nesta noite

Ah, o entendimento, a validade,
a estagnação dos horizontes intangíveis,
os segredos das imagens que se têm,
a suposição dos ângulos, a invisibilidade!

Em uma deformada obstinação,
uma voz configurada e uma exterioridade,
uma decidida adequação de formas,
a conveniência de uma luz recurvada.

Entre os ventos, os muitos ventos,
há os que sempre uivarão vazios,
sempre inalteráveis, enganados,
escuros e frios, em somas planetárias;

no silêncio dos passos irresolutos,
lágrimas secas e preces escusas,
as conclusões do sono elaborado,
as definitivas substâncias do ar:

nesta noite, nesta noite tão decidida,
há um tempo excluído, um silêncio conformado,
os desatinos dos ídolos, os métodos da inexistência,
são sólidos os continentes.

Hiatos

Tenho meus olhos cegos na avenida,
em sua ausência, nas distâncias do mundo...
Eu consulto estranhas estrelas, estranhas nebulosas.

Tenho meus olhos na chuva fria,
eu a detenho passiva em minha alma esquecida,
em meu tumulto, em um vento de noite vazia.

...

Eu tenho a velocidade esmagada,
uma imagem e um veículo sem formas,
eu invento seu corpo e meu sangue...

E ergo-me vivo e visionário,
Tenho os fragmentos de um chão,
Ergo-me coberto de espelhos e cristais.

...

Ergo-me substanciado em meu delírio,
na avenida, em sua grande ausência,
nos fragmentos de um corpo inexistente.

A criança

Qualquer cor, qualquer momento,
sempre a luz da cidade, ser e querer ser,
estar presente.

Não há um dia seguinte,
mas a vontade que trazemos,
o hoje que escondemos em nós,
talvez os passos que não daríamos,
qualquer rua, qualquer parede,
o chão em que colocamos os pés.

E o filho sempre será de humana divindade,
sempre se fará no riso dos desesperançados,
na voz dos desgraçados, dos insanos,
na sina dos desistentes e de nossos olhos,
nas angústias dos conformados,
na mão que não estendemos.

Ei, criança que está além de minha janela,
criança deixada dentro de um vestido lunar,
roupa de gente grande e suja de noites eternas:
vejo sua mãozinha saindo de dentro do tempo,
o beijo que lhe recusam, o silêncio do dia,
a lixeira do prédio e seu riso tão esperto!

Ei, criança mistura de mundo e fantasia,
eu a percebo, como a percebo:
você vem de grande luz imaginária!

No quarto

A janela, o azul, o lado de fora...
Nuvens raleadas depois da janela,
as garças brancas que se escurecem!

E a cidade que não é minha,
o calor da cortina e três paredes lunares,
a porta da luz para o resto dos cômodos,
a espreguiçadeira gasta onde se repousa...
E o corredor é escuro, o firmamento,
a morada sem unicidade.

O retrato sob o abajur apagado.
No sentido da conformidade, a espera,
uma cama assentada no vazio;
nos olhos, a deformidade,
o mundo intervalado:
a mão desliza no corpo.

E as cores nunca se roubam,
os transeuntes articulados são invisíveis,
as roupas penduram-se em cabides,
os traços são elementos simetrizados,
os jardins de dentro são os jardins de fora,
as uniformidades de pedras cobertas por cimentos.